sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Com "fogo no rabo"?

Se Laerte virasse Sônia num país islâmico, o cartunista indulgente com assassinos não chegaria ao fim da primeira maquiagem.

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O cartunista Laerte (à esquerda) transformou-se na ativista Sônia
O universitário Laerte Coutinho, com quem convivi por dois anos na Escola de Comunicações e Artes da USP, já refletia no traço e no conteúdo a influência do cartunista Georges Wolinski, uma das vítimas do ataque terrorista à redação do Charlie Hebdo. Discípulo aplicado de um mestre do humor anárquico, tratava sem misericórdia qualquer tema ou personagem capturados pelo olhar sarcástico. A escolha do alvo passava ao largo de opções políticas, ideológicas ou religiosas. Tudo e todos podiam entrar na mira do seu lápis.
Nos anos seguintes, os trabalhos que o transformariam em celebridade ficaram mais refinados. Mas o profissional famoso foi essencialmente uma continuação do amador que admirava Wolinski até que, 2004, o cartunista avesso a qualquer tipo de engajamento se apaixonou pela causa dos transgêneros, passou a usar trajes femininos e acabou virando “Sônia”. Assim começou a morte do Laerte que conheci, consumada pela reação de Sônia ao espetáculo do absurdo protagonizado em Paris por fundamentalistas islâmicos.
A perplexidade provocada pela execução do octogenário Wolinski ameaçava ressuscitar o cartunista que disparava charges em todas as direções quando o discurso de adeus foi interrompido por Sônia: “O ruim é que tudo isso vai fortalecer a direita”, ressalvou a voz suave. No mundo binário em que vive a estranha entidade, só existem esquerda e direita. Se os franceses que não se entusiasmam com o crescimento da comunidade islâmica são de direita, deve-se deduzir que é de esquerda, como Sônia, gente que metralha quem ousa fazer piadas com figuras sagradas.
Nesta terça-feira, enquanto milhões de pessoas se juntavam na grandiosa ofensiva contra o primitivismo liberticida, um cartum na segunda página da Folha confirmou que a mudança operada no autor foi muito além da visível a olho nu. Assinada por um Laerte que já não há, a obra parida por Sonia se divide em dois quadrinhos. No primeiro, três vultos planejam numa sala da redação a edição seguinte, que se concentraria no monumento à boçalidade homicida. O que deveria ser destacado na capa? A resposta aparece no segundo quadrinho, que reproduz a capa em que VEJA revelou que Lula e Dilma sabiam do que ocorria nas catacumbas da Petrobras.
O Laerte que não depilava o corpo fustigaria fustigaria os carrascos. A ativista Sonia acha que foi a falta de juízo que matou os colegas do Charlie Hebdo. Se tivessem entendido que fanáticos não sorriem, instituído a autocensura e proibido a entrada do profeta Maomé nas páginas do semanário, estariam todos vivos. O Laerte de antigamente ficaria indignado com a tentativa de assassinato da liberdade de expressão ocorrida em Paris. Sônia tentou assassinar a verdade no Brasil.
A mão que rabiscou o cartum obedece a uma cabeça tumultuada. Compassiva com matadores de humoristas, não perdoa a independência da revista que apressou a agonia dos quadrilheiros que insultaram o Brasil decente. Não vê nada de mais no maior escândalo político-policial da história. Acha até engraçada a entrada em cena de Lula e Dilma no palco do Petrolão.
Tudo somado, estã claro que, em sua versão Sônia, o cartunista já não sabe o que diz ou desenha. Laerte ignora, por exemplo, como são as coisas no mundo islâmico. Nem desconfia que, se tentasse virar mulher por lã, não chegaria ao fim da primeira maquiagem.( Augusto Nunes)
http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/direto-ao-ponto/se-tentasse-virar-sonia-num-pais-islamico-o-cartunista-indulgente-com-assassinos-nao-chegaria-ao-fim-da-primeira-maquiagem/

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