segunda-feira, 27 de junho de 2016

O que significa a calamidade do Rio.

A sociedade não suporta mais universidades e hospitais fechados, violência desenfreada, salários atrasados e o caos urbano. A boa notícia é que há saída para a crise.

O que significa a calamidade do Rio
RUÍNAS As mazelas atuais são reflexo de problemas que se arrastam há muito tempo
*Eliane Lobato
Na semana passada, a greve dos professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), uma das mais importantes do Brasil, completou três meses. Com dívidas de R$ 150 milhões e sem recursos para pagar salários, a instituição cogita cancelar o vestibular de 2017 e até fechar as portas definitivamente. No lugar das salas de aula, há agora lixo espalhado, paredes quebradas e fiação exposta. Também alguns dias atrás, o Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe) suspendeu, por falta de recursos, cirurgias de emergências. Em dois anos, o número de leitos despencou de 800 para 170 e já se fala no risco de fechamento do hospital. Até a sexta-feira 24 – o valor aumenta a cada dia – o Estado do Rio devia R$ 400 milhões em honorários para 393 mil servidores, sendo que algumas categorias, inclusive as vitais, como médicos e professores, estão há quatro meses sem receber o salário integral. Na madrugada do domingo 19, quinze homens armados com granadas e fuzis invadiram o Hospital Souza Guiar, no centro, para resgatar o traficante Nicolas Pereira de Jesus, o Fat Family. A ação cinematográfica repercutiu em diversas partes do mundo, especialmente porque o Souza Aguiar é o maior centro de emergência do Estado e um dos cinco credenciados para atender turistas estrangeiros. Na quinta-feira 23, foram cortados, por falta de pagamento, os aparelhos de comunicação Nextel dos policiais civis e eles passaram a contar apenas com os próprios celulares para pedir ajuda em situações de risco.
SEM VERBA Pacientes esperam por atendimento no hospital universitário Pedro Ernesto. Falta de recursos levou ao fechamento de leitos e a problemas estruturais
SEM VERBA Pacientes esperam por atendimento no hospital universitário Pedro Ernesto. Falta de recursos levou ao fechamento de leitos e a problemas estruturais.
Os episódios descritos acima mostram que o Rio de Janeiro vive um colapso sem precedente. O dinheiro acabou. A violência sufoca milhões de pessoas. As áreas essenciais, como saúde e educação, estão em ruínas. O declínio chama ainda mais a atenção diante do que o Rio representa para o Brasil e o mundo. Nenhuma outra cidade brasileira é tão admirada, invejada e falada dentro e fora do País. Nenhuma inspirou tantas pessoas. Por mais que Brasília tenha ocupado o espaço político nos últimos anos, o Rio é a capital sentimental dos brasileiros. Sob diversos aspectos, é incomparável, e isso torna mais chocante a situação de penúria em que se encontra. O Rio vai receber a Olimpíada, a primeira a ser realizada na América do Sul, o que por si só coloca a cidade sob os holofotes globais. Faltam pouco mais de 40 dias para o principal evento esportivo do planeta – maior até do que a Copa do Mundo – e é uma lástima o fato de o Estado enfrentar uma das maiores crises de sua história justamente agora, às portas de um acontecimento que deve provocar um efeito redentor para a cidade
INSALUBRE Estudantes e professores convivem com o lixo na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) após greve de funcionários da limpeza por falta de pagamento
INSALUBRE Estudantes e professores convivem com o lixo na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) após greve de funcionários da limpeza por falta de pagamento.
Basta observar com atenção os indicadores financeiros para entender a gravidade da situação. O Rio tem receitas anuais de R$ 58,8 bilhões. Suas despesas totalizam R$ 78,8 bilhões, o que configura um déficit de aproximadamente R$ 20 bilhões por ano. É como se um trabalhador que recebe R$ 1 mil por mês precisasse de R$ 1,5 mil para bancar suas despesas. A conta obviamente não fecha. Pior: as dívidas se avolumam, até chegar ao ponto em que se tornam impagáveis. Na sexta-feira 17, diante do quadro sombrio, o governador interino Francisco Dornelles (o titular, Luiz Fernando Pezão, está afastado para tratar de um câncer) decretou estado de calamidade pública, mecanismo geralmente usado em ocasiões de tragédias naturais e que pressupõe a possibilidade de liberação imediata de recursos financeiros por parte do governo federal. Por mais que a iniciativa possa ser considerada oportunista (graças a ela, a União prometeu liberou cerca de R$ 3 bilhões para socorrer as finanças do Rio), a palavra calamidade traduz à perfeição o que se passa no Estado.
Colocar a culpa pelas mazelas cariocas nos ombros de apenas um gestor é uma injustiça histórica. O Rio tem convivido, em seus 451 anos, com os dois extremos: a decadência – como nas crises econômicas causadas pela queda da produção de cana de açúcar ou do cultivo de café, em séculos passados – e o esplendor, a partir de 1808, quando virou endereço do governo de Portugal e da Família Real. Experimentou a grandeza de ser capital do País e o sentimento de derrota ao perder o posto para Brasília, em 1960. Lidar com poder e declínio, portanto, é um aprendizado antigo, e certamente será importante para ajudar o Estado fluminense a encontrar as saídas para a grave crise que enfrenta agora.
2429-COMPORTAMENTO-RIO-INFO
CLIQUE MA IMAGEM PARA AMPLIAR
O retrato atual é resultado de problemas que se arrastam há muito tempo. Tome-se como exemplo as despesas obrigatórias. Do déficit estadual de quase R$ 20 bilhões, R$ 13 bilhões se referem à Previdência. O Rio tem mais aposentados (cerca de 245 mil) do que servidores na ativa (em torno de 226 mil), uma aberração que compromete as finanças de qualquer ente público. Trata-se, portanto, de um impasse estrutural, que requer mudanças profundas. A conjuntura também afetou a performance econômica do Rio. O impacto da crise da Petrobras, devassada por um esquema de corrupção, abalou as finanças do Estado, e a queda na arrecadação com os royalties do petróleo, que despencou quase 40% apenas no ano passado, causaram sérios prejuízos.
Há saídas para a crise? De acordo com especialistas entrevistados por ISTOÉ, é possível seguir um caminho diferente. A reforma administrativa é o primeiro deles. “A crise do Rio se deve à incapacidade de gestão das despesas, do enquadramento entre as receitas que entram e o dinheiro que sai”, afirma o economista Alberto Borges Matias, especialista em contas públicas. Nessa conta, está o aumento absurdo de despesas com pessoal. Segundo relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE) publicado no Diário Oficial na terça-feira 21, as despesas do Rio com funcionários da ativa e aposentados aumentaram 18,8% nos últimos cinco anos, já descontada a inflação. Borges diz que uma gestão mais equilibrada seria suficiente para evitar que o Estado fluminense fosse, entre todos os da federação, o que registrou maior crescimento de gastos com pessoal. A saída, aponta ele, nem precisaria ser traumática. “Basta cortar os salários astronômicos, as horas extras e os benefícios exagerados.”
Para o secretário estadual de Planejamento, Júlio Bueno, o crescimento de pessoal não é a questão central e, sim, a crise estrutural da Previdência. A solução para essa questão, segundo ele, passa pela esfera federal. “Para cada coronel da Polícia Militar na ativa, o Rio tem hoje 60 inativos. A legislação é anacrônica e precisa ser modificada”, diz Bueno. A outra alternativa é limitar a idade mínima para a aposentadoria, associada ao fim da paridade de aumentos entre ativos e inativos. Segundo o secretário, as leis que regem esses disparates podem ser alteradas rapidamente. Mas dependem, claro, de disposição política.
VIOLÊNCIA SEM FIM Policiais entram na favela da Rocinha após tiroteio com traficantes na sexta-feira 20
VIOLÊNCIA SEM FIM Policiais entram na favela da Rocinha após tiroteio com traficantes na sexta-feira 20.
Parte da calamidade do Rio se deve à queda drástica do preço do petróleo e aos escândalos de corrupção na Petrobras. A arrecadação gerada pelo setor petrolífero despencou de R$ 8 bilhões em 2014 para R$ 3,6 bilhões em 2016. Cerca de 80% das atividades da Petrobras estão inseridas no Rio, fazendo com que o impacto da crise na empresa atinja em cheio as finanças do Estado. Para o pesquisador José Roberto Afonso, da Fundação Getulio , a “óleo dependência” está no centro da crise. O economista Sérgio Besseramn, ex-presidente do IBGE, concorda. “O Rio sempre tratou os royalties de petróleo como se fossem mais um imposto, e usou o dinheiro para pagar contas quando deveria ter feito uma poupança”, afirma. “Isso precisa mudar.” O quadro é grave, mas o Rio é suficientemente forte para superá-lo.

Nenhum comentário: