Se Dilma Rousseff foi a adversária que todo candidato pede a Deus, Serra soube ser o candidato com que sonha a mais bisonha adversária. Se o PT seguiu protagonizando bandidagens e trapalhadas suficientes para ser enterrado sem honras por dois ou três discursos de um Carlos Lacerda ou de um Jânio Quadros, o PSDB reafirmou a vocação para desperdiçar em tiroteios domésticos a munição que não ousa usar contra o alvo verdadeiro. O candidato e o partido se mereceram. Quem merece coisa bem melhor é a imensidão de brasileiros insatisfeitos com o governo. Merece e, até que enfim, passou a exigir.
“Esses 44 milhões que votaram em José Serra não são do PSDB”, compreendeu FHC. “É uma parte da sociedade brasileira que pensa de outra maneira, e não se pode aceitar a ideia de há uma separação entre pobres e ricos. Nunca vi uma elite tão grande”. O Brasil dos descontentes é infinitamente maior que Serra e muito mais combativo que o PSDB, registrei num post aqui publicado no mesmo dia da entrevista de FHC. No primeiro turno, incontáveis eleitores frustrados com a tibieza do candidato tucano optaram por Marina Silva. No segundo, digitaram o número de Serra para votar na democracia.
O PSDB continuará distante desse colosso eleitoral se não se der conta de que, depois deste 31 de outubro, não haverá esperança de salvação para quem se declara adversário do governo mas não sabe, ou não quer, interpretar o pensamento e as aspirações da resistência democrática. Os líderes que não aprenderem a opor-se o tempo todo logo não terão ninguém a liderar, e serão substituídos por quem souber que a prudência não pode anular a bravura. Sobretudo, não haverá esperança de salvação para políticos que engolem sem engasgos a discurseira que, simultaneamente, amaldiçoa o grande governo de FHC e celebra o faz-de-conta da potência sul-americana, como se algo de grandioso pudesse vicejar na Era da Mediocridade.
A ausência de réplicas tucanas aos palavrórios de novembro atesta que, até agora, o recado de FHC não interrompeu a interminável siesta pós-eleitoral. “Eu recebi uma herança maldita”, Lula mentiu de novo em Seul, na reunião do G-20. Enquanto a oposição oficial fazia cara de paisagem, um editorial do Estadão recolocou as coisas no lugar. “Para que a memória do país não fique contaminada pela falta de memória do nosso ‘pato manco’”, rebateu o último parágrafo, “convém lembrar (…) a derrubada da inflação com o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a criação do Proer, a criação das agências reguladoras, as privatizações, especialmente da telefonia, da Vale, da Embraer (…). Lula e o PT foram contra tudo isso”.
Quem não teme revides da oposição diz o que lhe dá na telha ou o que chefe manda, mostrou há dias Dilma Rousseff em outro improviso desbeiçado. “O grande desafio é dar um salto e avançar em cima dessa herança bendita, que tem sempre um grande peso e que para honrá-la temos que ser inovadores”, decolou a oradora aprendiz, a bordo do “momento mágico vivido pela nação” e dos “indicadores sociais de países desenvolvidos” que Lula colheu sabe-se lá em qual das tantas hortas de sabujices. Ninguém no PSDB indignou-se com a novidade: depois de vender anos a fio a fraude da “herança maldita”, o camelô de si mesmo resolveu lançar na praça, pela voz da protegida, o embuste da “herança bendita”.
Nenhum deputado, senador, governador ou cartola partidário julgou necessário antecipar-se ao que escreveu José Roberto Guzzo na edição de VEJA desta semana. “O Brasil não tem um único indicador comparável aos do Primeiro Mundo em áreas fundamentais como educação, saúde, esgotos, transporte coletivo, criminalidade, rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e por aí afora”, corrigiu o colunista. “Não tem competência, sequer, para montar um exame de escola como o Enem”.
Com ou sem o PSDB, a oposição real vem defendendo o legado de Fernando Henrique com a convicção obstinada que sempre faltou à oficial. Com ou sem o partido, a oposição de verdade está também decidida a matar no nascedouro a farsa concebida para substituir a realidade por um Brasil de cartão postal e anúncio da Petrobras. É preciso ensinar ao governo que impostura tem limite. O PSDB precisa aprender que quem vive morto de medo acaba morrendo de inanição.
*Texto de Augusto Nunes
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