Juiz Eduardo Perez de Oliveira
O Blog do Fred, da Folha de
S. Paulo, repercutiu nesta sexta-feira (19) o texto “Servidores
Públicos não são ladrões”, do juiz Eduardo Perez de Oliveira.
Publicado originalmente no perfil pessoal do Facebook, no texto o magistrado
reflete sobre declaração do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em que
compara o exercício de servidores públicos concursados e políticos.
Confira abaixo ou clique aqui para ler a
publicação no portal da Folha.
Servidores Públicos não são ladrões
Para meu espanto, hoje me deparei com uma frase
supostamente dita pelo Sr. Luiz Inácio Lula da Silva, a saber:
“O político, por mais ladrão que seja, todo ano tem
que enfrentar o povo, sair na rua e pedir voto. O funcionário público não. Ele
faz concurso e fica lá, com o cargo garantido, tranquilo”
Eu fiquei em dúvida se era verdade, já que tem
tanta mentira por aí sendo espalhada. Chegaram a inventar, vejam só, que os
procuradores tinham dito não possuir provas contra o Sr. Luiz Inácio, somente
convicção, o que é uma tremenda inverdade. Não se pode mesmo acreditar em tudo
na internet.
Verdade ou mentira, fiquei aqui pensando se essa
frase faz sentido.
Eu estou Juiz de Direito, aprovado em concurso
público, também em outros cargos antes de lograr esta graça. Como a memória da
gente é falha, eu me esforcei para lembrar como foi o processo.
Conferi, cuidadosamente, se eu não tinha sido
financiado por alguma empreiteira. Também verifiquei se eu não tinha obtido meu
cargo desviando dinheiro de alguma empresa pública, fazendo aí um caixa 2 para
me apoiar. Pode ser a idade, mas não me veio à memória disso ter acontecido.
O que me recordo é do esforço dos meus avós, dos
meus pais e dos meus familiares, mas muito esforço mesmo, para garantir
educação, sem luxos. Também não me é familiar ter participado de esquemas ou
ajustes partidários. Não dava tempo, saindo de casa para trabalhar às sete da
manhã e voltando às nove, dez horas da noite, só com o horário do almoço para
abrir os livros e enfrentar o escárnio.
Eu lembro de ter estudado muito, da frustração em
razão do pouco tempo, das dúvidas se algum dia eu chegaria lá. Eu me recordo
bem do dia da minha prova oral, num estado onde não conhecia ninguém, tremendo
diante dos examinadores de uma banca absolutamente imparcial presidida pelo
Desembargador Leandro Crispim.
Quem sabe estaria mais calmo se eu tivesse feito
coligação, se uma mão lavasse a outra, se algum ajuste, talvez aquele esquema…
Mas não daria certo. Veja você que eu estava prestando um concurso público e
até a fase oral eu não tinha rosto, e a banca (que injustiça!) também era
formada quase que absolutamente por gente concursada, magistrados aprovados em
um concurso semelhante.
Não iria adiantar caixa 2, apoio parlamentar,
conversa de bastidor. Eu estava ali para ser examinado imparcialmente pelos
meus conhecimentos. Era só Deus e eu.
Vai ver, pensei, que meu caso é um daqueles fora da
curva, uma das tais histórias malucas. Quem sabe a regra não fosse a
interferência política e econômica nos concursos?
Conversei com vários colegas juízes e, fato
estranho, todos confirmaram que não fizeram caixa dois, nem coligação, nem
tiveram conversas de bastidores. Estudaram, com muito esforço, alguns com
privação, e foram aprovados em um concurso impessoal e imparcial.
Para não dizer que é coisa de juiz, essa tal elite,
falei com meus amigos procuradores, promotores, escreventes, oficiais de
justiça, policiais civis e militares, delegados, professores, médicos,
enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e tantos outros aprovados em concurso
público de provas e títulos.
Todos deram a mesma resposta: lograram êxito após
muito estudo, de forma limpa e transparente.
“Mas nenhuma empreiterazinha?”, insisti. “Quem sabe
alguma verba de empresa pública?”. Não. Foi estudo mesmo.
O mais curioso é que todos tiveram que apresentar
certidão de antecedentes criminais, logo, nenhum podia ser ladrão. Nem ladrão,
nem outra coisa. Algumas carreiras fazem sindicância de vida pregressa. Ai do
candidato que não possui um passado ético, com certeza não entraria pela
estreita porta do concurso público.
Aproveitei e, ainda meditando sobre a frase, me
peguei pensando se todo ano, ou melhor, a cada quatro anos (alguns, oito), eu
precisava enfrentar o povo.
Realmente, se o Sr. Luiz Inácio disse isso, ele
está certo. Eu não enfrento o povo anualmente. Aliás, eu não enfrento o povo.
Não tenho medo da minha gente, nem litígio com ela. Eu sou povo também. Pode
parecer surpresa, mas concursado faz parte da nação.
Eu não enfrento, eu atendo. Eu recebo preso. Eu
recebo mãe de preso, pai, vó, filhos, esposa de preso. Recebo conselheiro
tutelar. Recebo advogado. Recebo as partes também. Ouço a vítima do crime, ou,
em situações mais tristes, os que sobreviveram a ela. Eu vejo o agrícola que
vai pedir para aposentar. Vejo o cidadão que não tem medicamento, a mãe que
busca escola pro filho, o neto que busca uma vaga de UTI pro avô.
Eu cansei de ver o piso do fórum gasto de passar
tanto calçado, de chinelo usado a sapato caro, de gente que vê no Judiciário
seu único porto seguro. Gente que não conseguiu vaga em escola, em creche. Que
não conseguiu remédio. Que se acidentou na estrada esburacada. Que trabalhou
nesse calor inclemente do Centro-Oeste por quarenta anos ou mais, com a pele
curtida de sol, e quando foi pedir aposentadoria disseram a ele que não tinha
prova. Não sou quiromante, mas eu aprendi a ler a mão e o rosto desse povo.
Aprendi a falar a língua deles, não porque eles vão votar em mim, mas porque é
minha obrigação para aplicar a lei.
Essa mesma gente que os políticos enfrentam
(enfrentam, vejam vocês!), segundo a tal frase, eu atendo todo dia. É meu
dever, e com que prazer eu realizo esse dever!
Eu atendo essa gente que vem acreditando há décadas
nesses políticos que, como um fenômeno natural, aparecem apenas de forma
episódica e em determinadas épocas. Um povo que acreditou que teria saúde,
educação, segurança, lazer, trabalho, aposentadoria, dignidade e tantos
direitos básicos só por ser gente, mas não tem.
Esse mesmo povo que vota, que deposita na urna sua
esperança, a recolhe depois despedaçada, cola o que dá e procura o promotor ou
o defensor público, servidores concursados, quando não um nobre advogado dativo
ou pro bono, para pedir ao juiz esse direito sonegado. São os concursados que
garantem esse direito.
São os juízes que aplicam a lei criada pelos
políticos eleitos para o Legislativo, e nessas horas em que a lei é dura e
talvez não tão justa, quando devemos fazer valer o seu império, só nos resta
ouvir e consolar.
Juízes, é preciso dizer, não são máquinas, porque
nessas engrenagens desprovidas de coração que formam o sistema, é a nossa alma
que colocamos entre os dentes do engenho para aplacar seu cruel atrito.
E quando estamos sozinhos, nós sofremos, nós
choramos, porque lidamos também com a desgraça do povo, do nosso povo, do povo
do qual fazemos parte e que não enfrentamos, mas atendemos.
Perguntei aos meus amigos promotores, defensores,
escreventes, analistas, oficiais de justiça, professores, policiais, guardas civis
metropolitanos, agentes carcerários, bombeiros, militares, médicos, agentes de
saúde, enfermeiros e tantos outros, se eles por acaso enfrentavam o povo, mas
me disseram que esse povo eles faziam era atender.
É também a alma deles que lubrifica essa máquina
atroz que é o sistema.
É à custa da alma do concursado que o Estado se
humaniza. Que o digam nossas famílias, nossos amigos… que digamos nós, quando
abrimos mão de tanta coisa para cumprir nossa missão, quando para socorrer um
estranho muitas vezes alguém próximo a nós precisa esperar.
Forçoso que se concorde, nós não enfrentamos o povo
a cada dois, quatro anos. Nós o atendemos dia e noite, nós olhamos seu rosto,
tentamos aplacar sua angústia em um país em que tudo falta, quando um médico e
sua equipe não tem nem gaze no hospital público.
E fazemos isso porque amamos nossa profissão, seja
ela qual for, não porque precisamos de votos. Nós chegamos onde chegamos com
dedicação, não com esquemas, e sem lesar o patrimônio público ou a fé da nação.
São servidores públicos concursados que estão
descobrindo as fraudes que corroem nosso Brasil, do menor município à capital
do país, e serão servidores públicos concursados a julgar tais abusos. São
servidores públicos concursados que patrulham nossas ruas, que atendem em
nossos hospitais, que ensinam nossas crianças.
Nós não precisamos prometer nada para o povo, nós
agimos.
Realmente, é preciso temer pessoas que possuem um
compromisso com a ética, não com valores espúrios.
*Fonte: Assessoria de Comunicação da ASMEGO, com
informações da Folha de S. Paulo