O
poder do chefe da Casa Civil da Presidência da República, como quase tudo no
governo do PT, é uma relação incestuosa entre o partido e o Estado. José
Dirceu, que foi ministro da Casa Civil na fase inicial do primeiro mandato de
Lula, já abriu os trabalhos ampliando os poderes de sua pasta. Ele comandava a
máquina partidária e vendeu aos radicais a ideia de que Lula só se elegeria em
2002 com a suavização do discurso socialista estatizante e hostil ao livre
mercado. Deu certo, e a figura de leão vegetariano colada a Lula funcionou na
costura das alianças e nas urnas. Em retribuição, José Dirceu tornou-se
superministro, condição que alardeava aos quatro ventos com variações desta
frase: "Ele é o presidente, mas quem manda no governo sou eu". Dirceu
e a Casa Civil foram os guardiões e os fiadores dos acertos e compromissos
firmados com políticos poderosos e grandes empresários. Parte desse enorme
poder encarnado por Dirceu na Casa Civil foi passada a seus sucessores na
pasta. Com o poder, tornou-se hereditário também o hábito de o titular usar o
ministério como balcão de negócios e, uma vez fora, lançar mão de sua
influência junto a quem ficou para continuar operando.
Qualquer
negociação estratégica com o setor produtivo e o Congresso passa
necessariamente pela Casa Civil, que, com mais ou menos delegação, dependendo
da circunstância, representa a vontade do presidente na definição de obras de
infraestrutura, liberação de linhas de crédito em bancos oficiais, vetos e
indicações para os mais altos cargos da administração pública. Dos seis
ministros que assumiram a Casa Civil nos últimos doze anos, três nutriram o
sonho de chegar à Presidência. Dilma Rousseff conseguiu, José Dirceu e Antonio
Palocci foram abatidos em pleno voo, e Aloizio Mercadante, o atual ministro,
mesmo no alvo do fogo amigo, mantém-se firme no curso.
(VEJA.com/VEJA)
Mas
com o poder costuma vir o abuso do poder, e não é surpresa para ninguém que a Polícia Federal e o Ministério Público estejam investigando o enriquecimento dos
antigos ocupantes do superministério. Se falhou na política, Dirceu - o
"guerreiro do povo brasileiro", "o revolucionário
socialista" - prosperou como consultor. Só das empresas investigadas no
escândalo da Petrobras recebeu mais de 10 milhões de reais. O ex-ministro
Antonio Palocci, que assumiu o posto no início do governo Dilma, também
enriqueceu sem precisar de muito esforço. Descobre-se agora que até mesmo a
mais discreta, a mais humilde e a aparentemente mais despretensiosa ocupante do
cargo, a ex-ministra Erenice Guerra, também carimbou seu passaporte vermelho
para esse seleto clube de milionários.
Há
duas semanas, a Polícia Federal e o Ministério Público deflagraram a Operação
Zelotes, que tem como alvo uma quadrilha que vendia facilidades no Conselho Administrativo
de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda (Carf). Integrado por
representantes do governo e dos contribuintes, o Carf funciona como uma espécie
de tribunal em que pessoas físicas e empresas podem recorrer das multas
aplicadas pela Receita Federal. Atualmente, tramitam no órgão centenas de
processos, cujos valores alcançam quase meio trilhão de reais. Cifras que
encheram os olhos - e os bolsos - de muita gente. A investigação identificou um
grupo que, atuando em parceria, oferecia veredictos favoráveis no conselho em
troca de polpudas propinas ou, nos casos mais sofisticados, uma taxa de sucesso
sobre o valor que eventualmente conseguissem abater dos débitos fiscais das
empresas. Estima-se que eles possam ter causado aos cofres públicos um prejuízo
superior a 19 bilhões de reais.
Foram
apontados como participantes do esquema lobistas, advogados e membros do
próprio conselho. Até a semana passada, no entanto, o caso parecia incluir
apenas aquela arraia-miúda da corrupção que costuma florescer à margem da
burocracia que cria dificuldades para vender facilidades. Parecia. VEJA teve
acesso a documentos apreendidos pelos investigadores. Durante a operação, a
polícia recolheu uma procuração que revela que a ex-ministra Erenice Guerra
atuava em parceria com um dos chefes da quadrilha do Carf. Como seus ex-colegas
de ministério, a petista surge mirando ganhos de milhões de reais. Como seus
antigos colegas de ministério, o enredo em direção à fortuna mistura contratos
de gaveta, procurações cruzadas, taxas de sucesso. Assim como os velhos
companheiros de partido, Erenice se rendeu à sedução do dinheiro. A exemplo dos
criminosos do PT, converteu-se da pior maneira possível.
Erenice
Guerra nunca chamou muita atenção, nem dentro nem fora do partido. Funcionária
do governo de Brasília, trabalhou na Secretaria de Segurança Pública. Levava
uma vida modesta, num bairro de classe média de uma cidade-satélite do Distrito
Federal. Com a chegada do PT ao poder, foi indicada para compor o governo de
transição, ocasião em que conheceu e se aproximou de outra burocrata, Dilma
Rousseff. E veio a guinada na carreira. Em 2003, Erenice foi nomeada chefe da
consultoria jurídica do Ministério de Minas e Energia, comandado por Dilma
Rousseff. Quando Dilma assumiu a Casa Civil, a assessora a acompanhou, ocupando
o cargo de secretária executiva, o segundo mais importante da pasta. Em 2010,
Dilma deixou o governo para se candidatar à Presidência, e Erenice, no vácuo da
amiga, tornou-se ela própria a ministra-chefe da Casa Civil. Foi um breve
reinado, de apenas cinco meses, abreviado pelo escândalo no qual ela foi
acusada de atuar em favor dos negócios do marido e do filho. Fora do Planalto,
Erenice, especialista em direito sanitário, abriu um escritório de advocacia.
Instalado
numa das áreas mais nobres de Brasília, o escritório da ex-ministra logo
passou a ser ponto de peregrinação para empresários de diferentes setores com
interesses no governo. Com o acesso, os contatos e a fama que tinha e ainda tem
no governo, nada melhor do que contratá-la para ajudar a solucionar problemas
de toda ordem. Os documentos apreendidos pela polícia põem Erenice no centro do
escândalo da Receita e ajudam a compreender o segredo de Midas. Um deles é um
contrato firmado entre ela e o braço brasileiro da Huawei, gigante chinês da
área de telecomunicações. Erenice se compromete a prestar à companhia
"serviços profissionais relativos à defesa fiscal da contratante no âmbito
da Administração Tributária Federal". Na prática, incumbiu-se de defender
os interesses da Huawei no Carf, o tribunal da Receita no qual agia a quadrilha
especializada em vender decisões. E o mais grave: para garantir o sucesso da
empreitada, a ex-ministra se associou ao advogado José Ricardo da Silva, então
membro do conselho e um dos mais destacados integrantes da quadrilha.
Em
valores atualizados, a Huawei discute no Carf um débito de 705,5 milhões de
reais, resultante de cobranças efetuadas pela Receita Federal. Nos documentos
apreendidos, está estabelecido o prêmio a ser pago a Erenice em caso de êxito:
1,5% do valor que a empresa deixaria de recolher aos cofres públicos. Admitida
a hipótese de a cobrança ser anulada integralmente, caberiam a ela nada menos
que 10 milhões de reais. O contrato foi acertado em 2013. José Ricardo ocupou o
conselho do Carf até fevereiro do ano passado. Resumindo, Erenice se associou a
um conselheiro do Carf para atuar em favor de uma empresa multada pelo próprio
Carf. A relação de Erenice com José Ricardo fica evidente numa "procuração
de gaveta" também apreendida. E mais: quando estava na Casa Civil, Erenice
já dava uma mãozinha aos planos de José Ricardo de ampliar seus poderes sobre
as decisões da Receita.
Mensagens
eletrônicas a que VEJA teve acesso mostram a ação de Erenice para ajudar o
advogado. Numa delas, encaminhada ao e-mail funcional dela no Palácio do
Planalto, José Ricardo escreve a um irmão da ministra, também advogado, e
também sócio na empreitada junto à Receita. Ele pede a intervenção de Erenice
na composição do Carf: "Segue apresentação da pessoa que lhe falei, apta a
ocupar a presidência do Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da
Fazenda". Com a mensagem, seguiu um anexo com o nome do próprio José
Ricardo e de quatro sócios dele - três dos quais também foram conselheiros do
Carf e figuram no rol de investigados na Operação Zelotes. Erenice, logo após
receber o texto do irmão, responde: "Estou enviando curriculum dos
meninos. Bjs".
Eis
a receita de sucesso que leva muita gente em Brasília a construir fortunas de
uma hora para outra. Enquanto estava no governo, Erenice plantava as bases de
uma estrutura com a qual viria a se associar depois, para ganhar dinheiro à
custa dos cofres públicos. E esse é apenas um dos muitos negócios arquitetados
no escritório da ex-ministra, cujos sinais de riqueza são visíveis. A advogada
Erenice nada lembra a companheira Erenice, que hoje mora no bairro mais caro de
Brasília, desfila a bordo de carros importados e enverga roupas de grife e
acessórios de luxo. Sempre que é procurada, a ex-ministra diz que não gosta de
jornalistas. Ela em breve será incluída no rol de investigados da Operação
Zelotes - e se juntará aos colegas que, da Casa Civil, decidiram mergulhar de
cabeça e braços abertos naquilo que juraram um dia combater. José Dirceu, por
sinal, foi intimado na semana passada a prestar esclarecimentos sobre os
supostos contratos de consultoria que sua empresa firmou depois que ele deixou
o Planalto. De 2006 a 2013, o ex-ministro faturou 39 milhões de reais,
pagamentos que continuaram a ser feitos mesmo após ele ter sido preso. Antonio
Palocci, que multiplicou seu patrimônio declarado em vinte vezes, incluindo
carros e imóveis de altíssimo luxo, também está às voltas com o Ministério
Público. A Casa Civil ainda guarda outros segredos.
*Com
reportagem de Hugo Marques
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