Em dezembro de 2009, a juíza venezuelana María
Lourdes Afiuni concedeu liberdade condicional a um opositor do regime do
caudilho Hugo Chávez, o banqueiro Eligio Cedeño, acusado de evasão de divisas e
à espera de julgamento durante quase três anos. No mesmo dia, Chávez chamou a
juíza de "bandida", acusou-a de ter aceito suborno do réu e exigiu que fosse
condenada a 30 anos de prisão. Ainda no mesmo dia, a sua prisão preventiva foi
decretada e cumprida. María Lourdes foi colocada na mesma cadeia onde cumpriam
pena criminosos que ela havia condenado e que passaram a ameaçá-la de morte
seguidas vezes. Depois de 14 meses do seu encarceramento, protestos
internacionais, aos quais se juntou até o linguista Noam Chomsky, o
porta-bandeira de Chávez nos meios acadêmicos nos Estados Unidos, obrigaram o
autocrata a colocá-la em prisão domiciliar, onde permanece até agora, sem saber
quando será julgada.
O caso de María Lourdes é exemplar. Até então,
os juízes venezuelanos que ainda procuravam conservar a independência diante do
Estado bolivariano sofriam pressões, eram ameaçados de ter suas carreiras
travadas ou mesmo de perder o emprego. Depois do que se fez com a juíza - um
nítido divisor de águas na crônica da demolição da ordem democrática no país -,
muitos de seus colegas passaram a temer também a perda da liberdade. Ao longo do
processo de asfixia das instituições, Chávez alternou o chicote e o afago para
sujeitar o Judiciário à sua vontade incontrastável. A contar do primeiro
mandato, o protoditador de Caracas aumentou de 20 para 32 o número de
integrantes das 6 instâncias que compõem a Suprema Corte venezuelana, preencheu
os cargos com gente de sua confiança e, por meio do Congresso em que detém a
maioria, renovou o mandato prestes a terminar de 9 deles.
O resultado é que todos os membros do tribunal,
responsável por decisões nas esferas constitucional, político-administrativa,
eleitoral, penal, social e civil, rejeitam deslavadamente o princípio da
separação dos poderes, comprometem-se com o avanço da agenda oficial e defendem
a punição dos "inimigos" do Estado. Era o que diziam, a seu tempo, os juízes da
Rússia de Stalin, da Alemanha de Hitler, da Itália de Mussolini - e de tantos
outros regimes totalitários que infestaram o mundo no século passado. Esses
ditadores, em vez de fechar o Judiciário, o povoaram de aliados não menos
ferozes do que eles. Com isso, criaram a sua própria e hedionda "legalidade",
acoplando-a ao controle absoluto dos meios de comunicação, das instâncias
administrativas e da estrutura das Forças Armadas.
O esmagamento do Judiciário para assegurar a
supremacia do Executivo é o aspecto mais crucial do drama venezuelano, exposto
no recém-divulgado relatório sobre o país pela ONG americana Human Rights Watch.
O documento Apertando o cerco: concentração e abuso de poder na Venezuela de
Chávez tem 133 páginas e é o segundo produzido pela organização sobre o país. O
anterior, de quatro anos atrás, fazia um balanço sobre uma década de chavismo -
o que custou aos seus autores, José Miguel Vivanco e Daniel Wilkinson, a
detenção, seguida de expulsão sumária do país. A pouco menos de três meses do
pleito em que o caudilho desponta uma vez mais como favorito, o relatório é
justificadamente mais pessimista que o anterior. A Venezuela de Chávez se parece
cada vez mais com o Peru de Alberto Fujimori, entre 1990 e 2000, como sistema
que conserva um semblante de aparato institucional democrático para servir,
porém, à autocracia.
Ao mesmo tempo, o venezuelano garroteia a mídia
de massa, mas, entre uma violência e outra - sempre respaldadas pelas togas
serviçais - deixa circular um punhado de diários críticos ao regime, cujas
tiragens, somadas, não chegam a 300 mil exemplares. O governo conta com seis
canais nacionais de TV, 4 estações de rádio, 3 jornais e 280 rádios
comunitárias. "As ações do governo enviam uma clara mensagem", resume o
documento. "O presidente e seus seguidores estão prontos a punir quem desafiar
ou obstruir os seus objetivos políticos."
*Editorial - O Estado de S. Paulo -
19/07/2012
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