Em fevereiro de 2005, pouco
antes da eclosão do mensalão, publiquei na Veja um artigo sobre uma palavra que
começara a frequentar o discurso político brasileiro: "republicano".
Passada mais de uma década, e muitos escândalos
depois, concluí que o artigo permanece atual, ao mostrar não só como os nossos
homens públicos empilham palavras vazias em nossos ouvidos, mas como a
empulhação lulista era bem maior do que se imaginava. Dois meses antes,
Lula havia lançado o "Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais
Rápido e Republicano". Pois é.
Eis o que escrevi, com
ligeiras modificações:
Uma palavra imiscuiu-se nos discursos dos próceres petistas, em sua forma
adjetivada: "republicano". Salvo engano, o primeiro a empregá-la foi
o professor Luizinho, líder do governo na Câmara. Ele disse que uma operação da
Polícia Federal colocou em risco o processo republicano. O presidente Lula não
perdeu a deixa e, numa reunião ministerial realizada dias depois, afirmou:
"Herdamos uma máquina administrativa ineficiente, desprovida, em boa
parte, do sentido republicano, sem vocação para realizar políticas em proveito
da maioria". No mesmo mês de dezembro, Lula lançou o "Pacto de Estado
em favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano". A porta estava
aberta para que os petistas usassem o termo com a prodigalidade com que os
coronéis nordestinos andam distribuindo cartões do Bolsa-Família. Um dos que
mais reincidem é o ministro da Educação, Tarso Genro, aquele que posou ao lado
do ditador cubano (e republicano) Fidel Castro. Genro disse que a política de
cotas nas universidades era "republicana, inclusiva, democrática".
Como o sistema de governo brasileiro deixou de ser monárquico em 1889, quando
foi proclamada a República, e não parece haver no horizonte uma ameaça de
reinstauração do antigo regime capitaneado pela família Orleans e Bragança, é
intrigante a adoção do adjetivo pelos petistas e a insistência na sua
utilização. Uma escarafunchada nos jornais mostra que o motivo não é
insondável. O pessoal do PT brande a palavra em resposta ao ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso. Em artigo publicado num jornal paulista, sobre a
renhida campanha eleitoral para a prefeitura de São Paulo, FHC comentou que
havia "sinais inquietantes de perda do sentimento genuinamente republicano
de conduzir o processo político". Resumindo: porque o tucano disse que os
petistas não são republicanos, os petistas começaram a repetir tal qual o corvo
do escritor americano Edgar Allan Poe: "Somos, sim; somos, sim".
As palavras têm história, e a de "republicano" é longa, complicada e
com final infeliz. Remonta à Roma antiga, quando o regime da res publica,
"sem um único soberano e de atenção à coisa pública, ao bem comum, à
comunidade", substituiu o dos reis, a mona archia, "o governo de um
só homem”. De palavra que designava oposição à monarquia, a palavra
"república" passou, nos séculos seguintes, a conceituar qualquer
sistema, inclusive o monárquico, que se contrapunha a governos injustos. Mais
adiante, no Renascimento, por meio de Maquiavel, "república"
tornou-se a denominação de um sistema aplicável apenas a pequenos territórios,
o que perdurou até o século XVIII e deu sustentação à criação das repúblicas que
compunham a colcha de retalhos do que mais tarde seria a Itália. Com a
Revolução Americana e a Francesa (que foi mais "republicana" na época
do Terror), essa noção é subvertida. A palavra "república" perde a
conexão com “territorialidade" e, no caso da americana, liga-se à
democracia representativa.
O advento do comunismo propiciou o aparecimento das "repúblicas
populares", em que a democracia representativa dá lugar à ditadura do
proletariado. Havia a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, como há
ainda a República Popular da China e a República de Cuba e a República
Democrática da Coreia. Para não falar dos sistemas de estrutura tribal
africanos, originados da descolonização, que também se autodenominam
"repúblicas", como a República do Congo e a República de Uganda. Ou
seja, todos eram ou são "republicanos": de Thomas Jefferson e James
Madison a Lenin, Fidel Castro e Idi Amin Dada. No Brasil, o ditador Getúlio
Vargas era "republicano", bem como o presidente bossa-nova Juscelino
Kubitschek e o general linha-dura Emílio Garrastazu Médici. Genuinamente, se
perguntados. Pode haver um final mais infeliz para uma palavra do que perder o
significado exato?
Assim, quando batem no peito e se dizem "republicanos", não se sabe
ao certo o que os petistas querem dizer. Se desejam afirmar-se
"partidários da democracia representativa", é uma bobagem sem
tamanho, visto que há monarquias bem mais democráticas do que muitas
repúblicas, como a Inglaterra e a Suécia. Talvez não queiram dizer nada e tudo
não passe de uma pinimba com FHC. Mas não é impossível que, por trás do termo
que serve de abrigo a um saco de gatos, alguns poucos petistas escondam ainda a
vontade de instituir uma república de caráter "popular", como a de
Cuba. Para evitar mal-entendidos, recomenda-se aos políticos brasileiros (não
só os petistas) que abandonem conceitos e palavras vagos. Ser
"republicano" pura e simplesmente não tem sentido. E de sentido é que
a política brasileira mais precisa.
* Por Mario Sabino, via O Antagonista
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